“Qual será o futuro da religião em um mundo que está perdendo a fé?”, por Frei William Silva

A palavra religião vem da palavra latina “religare”, que trás este sentido de fazer o elo de ligação entre o ser humano e Deus. O homem, por natureza, segundo o Catecismo da Igreja Católica, é um ser religioso, voltado a transcendência, pois está sempre se indagando sobre o sentido da vida, da existência.

Fazendo uma leitura panorâmica das religiões, constata-se que a religião sempre foi motivo de admiração e ao mesmo tempo de divisão entre os seres humanos de qualquer nacionalidade, raça, sexo ou condição social, e muitas vezes a mesma foi colocada a serviço de buscas de poder, destoando de uma linguagem de paz, concórdia, amor, fraternidade. Povos guerreavam em nome de seus deuses, deuses eram honrados com sacrifícios – até de seres humanos, a religião muitas vezes foi colocada para servir outros interesses, como meio de manipulação das massas, e o que era para religar, na realidade estava servindo para tornar o ser humano cada vez mais alheio a si mesmo.

Mas é possível dizer que a religião é a grande culpada dos muitos males que existem neste mundo? A religião seria a fonte de tantos sofrimentos e divisões? Ou na realidade seria a má compreensão da religião como um todo que impede de enxerga-la em seus outros aspectos?

A religião resguarda algo importantíssimo no ser humano, que é a linguagem simbólica, que fala mais à alma do que qualquer explicação.

Por meio da arte, da música, na experiência individual o ser humano é convidado a elevar-se a Deus. A religião ajuda a tocar algo do mistério divino, e às vezes, o que a palavra não dá conta de expressar, o silêncio diante do mistério é capaz de alcançar o que não se consegue por nossa própria razão. Não é à toa que na tradição cristã se fala de tantos homens e mulheres, a quem a igreja chama de santos, que em sua vivência cotidiana conseguiram traduzir com suas vidas algo desta relação misteriosa que se dá na intimidade da alma humana, deste espaço aberto a transcendência, cuja sede nunca cessa.

Houve tempos que a realidade transcendente era algo naturalmente aceitável, como a vida após a morte física, o julgamento, a vida no paraíso, no inferno, ou a purificação do purgatório. Estes temas geralmente eram cercados de medos e ameaças, e as muitas imagens de Deus eram quase sempre rodeadas de ameaças. Houve tempos que a fé explicava absolutamente tudo, e não sem motivos em outros tempos se afirmava que a teologia era a rainha de todas as ciências, e que a filosofia era a sua serva. Com o avanço histórico do pensamento filosófico e antropológico, lentamente Deus foi deixando de ser o centro das atenções para que o ser humano aos poucos fosse galgando espaço por meio da racionalidade, por meio do desenvolvimento da ciência empírica, que teve grande avanço de modo particular a partir do Iluminismo.

Nietzsche é quem vai afirmar no “Assim falou Zaratrusta”: Deus morreu e nós o matamos!

Nietzsche não estava interessado em religião, ou em afirmar ou negar a existência de Deus, pois não estava fazendo teologia, mas simplesmente expõe metaforicamente que se antes tudo se explicava por meio da fé, e que Deus era a resposta para tudo no ser humano. A partir do momento que o conhecimento científico avança, Deus vai perdendo território, já não faz mais sentido para as pessoas e a ciência com seus avanços se autoproclama capaz da verdade por si mesma por meio da técnica.

Entra no cenário histórico duas grandes rivais: a ciência e a fé. Mas quem disse que eram rivais? Aqueles que certamente enfatizaram demais uma única forma de se enxergar a existência. Se antes a religião era a grande detentora das verdades temporais e eternas, a ciência desta vez é quem exige para si este status, de tal modo a ser capaz de dizer o que existe e não existe, e Deus, por sua vez, não sendo em si uma realidade empírica, acaba sendo descartado, já que não tem como provar pela experiência laboratorial a sua existência. Surge o fundamentalismo científico, em oposição ao fundamentalismo religioso.

Mas Deus continua sendo motivo de discussão, de debates, de ordem filosófica e teológica, de tal modo que os argumentos se esgotam e não provam nada de sua existência ou inexistência, de tal modo que tudo o que se fala de Deus é sempre a partir da fé. Sim, isto mesmo, pois para alguém afirmar quer Deus existe, é preciso acreditar quer ele existe, e para se afirmar que Deus não existe, é necessário acreditar que ele não existe.

Mas e a fé, como está? Qual significado ela tem para o homem de hoje? Pode-se afirmar que, apesar de todos os percalços da história, o homem continua buscando a Deus o significado que lhe ajude a enxergar a vida com outros olhos. E fé não é coisa de pessoas sem conhecimento ou instrução, todos tem acesso a fé uma vez que todos tem garantido em si o espaço aberto a transcendência. Mas a mesma fé muitas vezes é destituída de uma identidade genuína, misturando práticas religiosas com superstições, e as pessoas ainda hoje tentam instrumentalizar Deus.

Mesmo com todo o desenvolvimento científico, o ser humano ainda busca sentido para sua vida, e em última análise, está buscando a este algo a mais que os salve de uma vida medíocre, entregue a mesmice, que não se reduza a um mero satisfazer de suas necessidades, mas antes, que os torne melhores enquanto pessoas. Muito se tem falado do amor, e do quanto ele dignifica a vida dos seres humanos, e não poucos, mesmo ateus, se admiram com a vida dos santos, que na sua vivência de fé, entregaram suas vidas para gerar mais vida, mais esperança, mais dignidade humana. Mas nem todos estão dispostos a abraçar o duro caminho da renúncia pela qual se promove a verdadeira fraternidade.

Fé não é simplesmente acreditar em Deus, ou em uma energia, mas acima é também uma convicção que move o comportamento, a atitude.

Envolve valores que servem de bússolas a orientar as escolhas pessoais em vista do melhor, daquilo que mais realiza o ser humano, que está a serviço de torná-lo aquilo que ele é em sua melhor versão, por isso a fé implica a conversão diária em assimilar a verdade de que pertencemos a algo maior a que chamamos Deus, uma vez que a vida, cujo mistério ninguém explica, não é produto de nossas próprias mãos ou resultado de nossas escolhas, mas de uma escolha anterior a nossa, e que certamente nos pensou com amor.

O ser humano ainda está em busca de sentido, mas quando se vive buscando esta referência de sentido em si mesmo, é semelhante a um espelho que está apontado para outro espelho: reflete o vazio. Ao passo que quando a referência é algo maior, ou seja, Deus, pode-se ver refletido aqueles valores que dignificam a todos, como a coragem de se desafiar a amar, a perdoar, a ter compaixão, bondade, empatia. Uma experiência autêntica de Deus não para na pessoa que dele experimenta, mas sempre leva ao encontro do outro, na vivência da compaixão sincera com a dor do próximo.

A religião tem futuro? Tem, se cada um resgatar o verdadeiro sentido deste “religare”, desta conexão interna da intimidade que se dá no íntimo de cada um. Conexão esta que não pode ser sufocada pelo egoísmo, mas deve empurrar o ser humano a caminhar adiante, descentralizando-se de seu Ego para olhar a sua volta e perceber a voz de Deus que interpela. A religião salva o ser humano da alienação na medida que leva a cada um a viver a autenticidade de sua resposta diante da vida, de Deus, no seu comprometimento com a Verdade quer está buscando. Só é possível a verdadeira fé e compaixão por meio desta volta de cada um a seu interior, pois é no coração, este solo sagrado intocável que se encontra a presença de Deus, que é ao mesmo tempo fonte e sede que nos impulsiona nas noites escuras da existência, certos de que a luz existe e está muito próxima de nós.

Por: Frei William Silva – Filosofia de Vida

Imagem de capa: Marc Majam no Pexels





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