Antes que a morte te leve, mãe

Uma carta aberta às mães que viveram pelos filhos e agora buscam um novo sentido à vida. Um desabafo aos filhos cujo maior desejo é vê-las felizes.

Mãe, a vida é linda. Do jeitinho que você disse que ela seria.

A gente nunca sabe qual vai ser o último abraço, a última briga, o último “eu te amo”. Por isso, no dia a dia, engolimos o nosso amor em nome do orgulho, da impaciência, daquela famosa “correria”.

A gente vive correndo atrás sabe-se lá do quê para, no final das contas, investir nosso tempo escrevendo todos os arrependimentos do nosso epitáfio.

Tá tudo ao contrário, né mãe? Podíamos ter amado mais, chorado mais, visto o sol se por. Podíamos ter viajado juntas, feito mais compras, trocado fofocas, cozinhado o almoço de domingo. Você podia ter me dado mais tapas na bunda e eu podia ter sido mais agradecida às suas noites em claro de preocupação enquanto eu me divertia com os amigos. Nós podíamos ter calado tantas ofensas, evitado tantas brigas e retardado o afastamento.

Nós podíamos ter sido a dupla dinâmica dos filmes, dos romances e sido aquelas melhores amigas que algumas filhas postam nas redes sociais. Nós podíamos, mas nós não fomos. Nós seríamos, mas nós não somos. Você e eu, mãe, somos tão diferentes de todas e tão diferentes entre nós que seriam precisos ainda menos dos meus 25 anos para percebermos que os nossos gênios não batem, nossas personalidades não se encaixam e alguns dos nossos valores se chocam.

Você, explosiva e desconfiada como uma boa escorpiana; eu, sentimental e boca suja como uma perfeita pisciana, falhamos na rotina de fazer dar certo a convivência que o destino nos impôs. Por outro lado, mãe, sabemos que a vida nos prega peças e, se não fomos capazes de nos “ensinar” aquilo que acreditávamos ser o certo, aprendemos com as nossas próprias diferenças a respeitar o nosso espaço, o nosso jeito, nossos altos e, sobretudo, os nossos baixos. Eu posso não ter me tornado a católica apostólica romana que você imaginou nem ter me casado virgem. Eu posso ter saído de casa, batido a porta, morrido por dentro e, depois, comprado flores para me redimir. Eu posso ter falado da boca pra fora e depois escrito milhares de cartas para me desculpar. Eu posso ter errado e é fato: eu errei. Errei como filha, como amiga, como companheira. Mas mesmo que você não se faça perceber, foi com você que aprendi a me amar. Todos os dias, antes de dormir, ainda consigo sentir sua mão na minha cabeça, rezando baixinho aquela oração que eu tanto gostava “Será uma grande mulher, terá um futuro brilhante”. O meu futuro chegou, mãe, e ele é brilhante – como você cantava nas suas orações diárias. Tornei-me mulher, uma grande mulher, não graças a suas palavras, mas sim devido aos exemplos que você me deu do que é ser uma puta mulher foda: como não admirar uma mulher que – criada para cuidar da casa e dos filhos – vê-se sozinha na luta para criar dois filhos, sem experiência, com um diploma indesejado nas mãos, o amargo da rejeição na boca e uma única motivação: dar de si o melhor às crias que, ingratas, quase nunca viam o seu real valor.

Sua história não é diferente da de muitas mulheres brasileiras, mãe, mas o modo como ela me tornou mulher é essencial para quem eu sou hoje: feliz, realizada e grata. Quantas foram as vezes que, mesmo machucada, eu te vi sorrir? Quantas foram as vezes que, mesmo cansada, eu acordei de manhã com você lavando o banheiro? E quantas foram as vezes que, mesmo sem criatividade, sem vontade e sem carinho, a comida estava prontinha e quentinha nas panelas, em cima do fogão?

Eu sei, mãe, eu não fui nem sou a melhor filha. Eu sei que falhei. Mas você, depois de vencer a maior luta da sua vida, parece que enfraqueceu. Sabe quando o super herói escolhe passar seus super poderes para o oprimido e acaba morrendo? Foi isso o que te aconteceu?

Mãe, eu preciso te dizer, antes que a morte te leve, que eu não quero mais te ver assim.

Eu preciso contar que nossas brigas, nossas ofensas e nossos desencontros foram esquecidos e que só restou o amor. Preciso gritar para o mundo o quão importante você ainda é para mim, mesmo que eu já não dependa inteiramente de você. Preciso falar que eu preciso, sim, do seu amor: aquele amor grato, sincero e até agressivo que você sempre esbravejou como um trovão para quem quisesse ouvir. “Eu faço o que for preciso pelas minhas crias, sim, e se for preciso faço de novo”.

As crias cresceram, eu sei, mãe. Mas a luta… a luta não acabou. Não deixe que a morte te leve, não deixe que ela te sugue, não deixe que ela se instale enquanto seu coração ainda bater. Reabra a cartilha de onde você tirou o maior ensinamento que me deu em vida: “eu hei de vencer” e vença de novo. Esqueça o leito daquela cama fria e vazia e redescubra a luz de todos os dias que você mesma me apresentou quando eu nem sabia falar. Levante-se e dê de novo aqueles primeiros passos que você me ajudou a dar quando eu nem imaginava o quão importante aquele novo aprendizado seria para o restante da minha vida. Esqueça aquele meu conselho de arrumar um namorado para afastar a solidão, mãe, a única coisa que você precisa é se amar: amar como eu me amo, amar como eu amo a vida, amar como eu te amo – tanto!

Antes que a morte te leve – dessa vida ou nessa vida – olhe-se no espelho e lembre-se que todas as conquistas que a sua filha poderia alcançar já o fez por si mesma. No entanto, a conquista de te ver sorrir de novo, hoje, só depende de você.

Antes que a morte te leve, sorria. Brigue comigo de novo. Me ensine um novo palavrão. Antes que a morte te leve, me conte uma história da sua infância, me leve para passear no bosque, me irrite de novo dizendo como o dia está lindo, mesmo quando tudo estiver feio. Antes que a morte te leve, me deite no seu colo, coe um café e me console por ter sido demitida sem justa causa e de repente. Antes que a morte te leve, lembre-se de que a luta não acabou e que a vitória não é nem nunca foi ver os seus filhos felizes, mas sim, ser feliz você, porque quando a morte chegar de nada vai adiantar dizer que mereceu viver.

Antes que a morte te leve, acredite: a vida é linda, sim, do mesmo jeitinho que você me ensinou a acreditar que ela é.

Antes que a morte te leve, lembre-se: apesar de todos os erros, mãe… eu amo você.

Por: Leticia Flores Montalvão – Lambida CasualObviusMag





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